sexta-feira, 29 de setembro de 2017

SETEMBRO


"Seldom we find" says Solomon Don Dunce
"Half an idea in the profoundest sonnet"

Edgar Allan Poe



A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra, correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada 
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu,
deuses de papelão sentando-se a meu lado. 

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?



Mário Botas
in Aventuras de um Crâneo e outros textos,
org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno, 2013



sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Era um país, um corpo,
uma cidade de ossos
calcinados, onde nem cães
metiam o dente.

E o corpo é um cristal lívido
no centro d'uma praça, deportado,
límpido, onde nem os homens
se atrevem.

A cidade aposta-se toda
na espessura do sono, na
candura banal, vulgar,

do país em ruína:
impaciente.


Paulo da Costa Domingos, Cal,
com prefácio de Vitor Silva Tavares, Lisboa, Averno, 2015

VEIO A ESSA HORA

Não vive neste bairro.
As lojas não conhece.
Não conhece esta gente
que se afana por elas.
Não sabe prò que veio.
Não compra aqui a imprensa.
Só recorda as esquinas
de que os cães bem se lembram.

As janelas acesas
aumentam-lhe a tristeza.
Coração transeunte,
junto às casas recentes
caminha a vacilar,
como alguém a quem levam.
O vento do subúrbio
enreda-se em suas pernas.

A rua como outrora.
E como outrora alheia.
E o ar escurecido,
a noite que se abeira.
Quando dobra a esquina
e aperta o passo, sonha
que o tempo não mudou
brincando a que regressa.

Depois passa distraído,
e pensa: foi uma época.


Jaime Gil de Biedma
in Antologia Poética, sel. e trad. de José Bento,
Lisboa, Cotovia, 1992