quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

EMILY DICKINSON / HAKIM BEY


I heard a Fly buzz – when I died –
The Stillness in the Room
Was like the Stillness in the Air –
Between the Heaves of Storm –

The Eyes around – had wrung them dry –
And Breaths were gathering firm
For that last Onset – when the King
Be witnessed – in the Room –

I willed my Keepsakes – Signed away
What portions of me be
Assignable – and then it was
There interposed a Fly –

With Blue – uncertain stumbling
Buzz – Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –


EMILY DICKINSON


*



A Terra precisa tanto de mais parques de estacionamento
como nós precisamos de mais remendos de asfalto
implantados no rosto e nos órgãos genitais
para que minúsculos discos voadores
do Planeta dos Germes Extraterrestres
possam estacionar em nós como as moscas
que E. Dickinson ouviu zumbir
à volta da sua cabeça quando morreu.


HAKIM BEY 
in Cão Celeste n.º4, trad. Inês Dias, Lisboa, Novembro de 2013

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CÃO CELESTE #6




Colaboram neste número:

Alexandre Sarrazola * Ana Menezes * Ana Biscaia * André Lemos 
Bruno Borges * Cláudia Dias * Daniela Gomes * Inês Dias * Isabel Baraona 
Joana Ribeiro * João Chambel * John Mateer * Jorge Roque * José Ángel Cilleruelo
José Miguel Silva * Luca Argel * Luís França * Luís Henriques * Luís Lima 
Luis Manuel Gaspar * Manuel de Freitas * Manuel Diogo * Maria João Worm 
Miguel de Carvalho * Paulo da Costa Domingos * Ricardo Álvaro * Ricardo Castro 
Ricardo Marques * Rui Caeiro * Rui Nunes * W.H. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O ferro das grades


Das primeiras vezes, pensei que ladrasse à minha passagem e nem sequer me virei. Quando o olhei com atenção, percebi que entre mim e o seu ladrar havia somente uma coincidência no tempo. Focinho ao alto, olhos fixos que nem por um instante se desviavam do seu inabalável desígnio, ladrava. Não ladrava a transeunte algum que passasse. Tão pouco ladrava a Deus que, por natureza, só existe para os homens e não para todos. Fazia como eu. Vociferava para ninguém por trás das grades do pátio estreito que lhe coube em vida. Vociferava sem esperança de ser libertado ou ouvido. Talvez nem quisesse ser libertado. Talvez nem quisesse ser ouvido. Talvez sem o saber soubesse que até para outra vida tinha passado o tempo de a ter tido. Vociferava apenas. Afrontando o ferro das grades. Afrontando o céu vazio. Afrontando o silêncio que lhe respondia nas pausas do seu vociferar repetido. Vociferava cego, surdo, quase ridículo, enquanto as patas se agitavam sobre a laje num cúmulo de desespero nulo. 


Jorge Roque, Nu contra nu,
Lisboa: Averno, 2014




Francis Bacon, "Study of a dog", 1952

domingo, 16 de novembro de 2014

'Aquilo que nos deixa adormecer a cada noite'


[...]

4. Sim, o texto começa na Achadinha, São Miguel, Açores, e é sobre animais; “cães, gatos, cavalos, burros, passarinhos de toda a espécie, tartarugas, grilos, caracóis, lesmas, borboletas, bichinhos de conta”; “a espantosa grandeza” “com que passeiam sobre o inferno”; gostar tanto deles que “talvez isso seja aquilo que ainda [nos] deixa adormecer em cada noite”. Diz a Renata: “Aos animais devemos essa luz solitária, quase música, quase silêncio, a que chamamos deus. Não o deus da Bíblia, que não sei onde repousa, mas aquele que cuida da alvorada. Porque eles o conhecem, porque com ele privam quando a primeira luz desponta.” Este texto saiu em Maio, no número cinco de uma revista chamada Cão Celeste.

[...]



sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Louis-Ferdinand Céline

[...]
A andar sempre para a frente recordava-me da cerimónia da véspera. Fora num prado que se realizara aquela cerimónia, por detrás de uma colina, e com a sua voz grossa o coronel arengara à frente do regimento. «Corações ao alto! - tinha ele dito... - Corações ao alto! e viva a França!» Quando não se tem imaginação, morrer é coisa de nada, quando se tem, morrer é coisa séria. Eis a minha opinião. Nunca tinha compreendido tanto de uma só vez.
Mas o coronel, esse, nunca tivera imaginação. Todas as desgraças daquele homem provinham daí, aquela sobretudo. Seria eu então o único a ter a imaginação da morte no nosso regimento? [...]


in Viagem ao fim da noite
2.ª ed., trad. Aníbal Fernandes,
Lisboa: Ulisseia, 1983


*


[...]
No jogo do homem, o instinto da morte, o instinto silencioso, ocupa decididamente um lugar importante, talvez a par do egoísmo. Ocupa o lugar do zero na roleta. O casino ganha sempre. A morte também. A lei dos grandes números trabalha a seu favor. É uma lei sem falhas. Tudo o que fazemos, de uma maneira ou de outra, acaba rapidamente por esbarrar com ela e por se transformar em ódio, em sinistro, em ridículo. Era preciso sermos dotados de um modo muito particular para falarmos de outra coisa para além da morte nestes tempos em que sobre a terra, sobre as águas, no ar, no presente, no futuro, nada mais existe. Sei que se pode ainda dansar no cemitério e falar de amor nos matadouros, o autor cómico mantém as suas hipóteses, mas é apenas um tapa-buracos.
[...]


in "Hommage à Zola", 1933
[Trad. Inês Dias]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

SINGULARIDADE

Não sou mais puro só porque versejo
e Deus me quis contrariado.
O que me cerca, quase desejo,
afirma-se no tempo e na verdade.

O que me cerca tem um nome vão.
Uns dizem mundo, outros futuro.
Mundo futuro é binómio-cão.
Mordendo, ladra, os ossos me une.

O que me cerca suspende a razão
em ambos os pratos da balança.
Fica pairando, tremendo no ar
ave da esperança e da distância.

Sim! - ninguém ouse violentar-me.
Sou o que fui, serei - talvez milagre!


RUY CINATTI



domingo, 12 de outubro de 2014

SÉTIMO DIA

Domingo, os lódãos
ficam mais sérios
no retrato

do jardim. Descansam
as criaturas, descansa quem
as criou, algures longe

da vista, longe do coração.
Descansa o cão extraviado
à sombra do contentor

e o ministro das finanças -
sempre, sempre tão
cansado - no seu reduto

murcho. Domingo, linha branca
que atravessa um olival:
já deste o ramo

ao padrinho? Vagares
de um mundo pequeno
ao domingo, no palheiro,

em histórias de papel velho
cor de açúcar mascavado -
eu bem não queria

morrer. Domingo nos montes
em volta, domingo na ilha
de Kirrin,

domingo em toda a parte,
de nenhures, de Deus
nenhum.


Rui Pires Cabral
in "Génesis", Suroeste — Revista de literaturas ibéricas, n.º 4, 
Badajoz, 2014

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A. M. Pires Cabral


5.


Não estou só
Recrutei companheiros para o Inverno
que não o temem como se teme um lobo,
mas apenas como é justo que se tema
o desdobrar das páginas do tempo:
com decoro. Então
aconchegados a mim, e eu a eles.
Somos uma parede.

Mas há quem esteja só
e assim deva ficar.

A esses, tudo aquilo que o nocivo
Inverno lhes trouxer
recordará o que ficou retido
nas levianas demasias do Verão.

As cartas que usarão como recurso
contra a ausência do Sol
ninguém lhas lerá, ser-lhe-ão devolvidas
com um carimbo maquinal: «Desconhecido
neste endereço». Cartas descompostas
de terem ido e voltado.
Cartas que em boa verdade
escreverão a si mesmos
sob outros nomes e moradas. Cartas
semelhantes a ardilosos bumerangues
ou a cães ensinados a voltar para nós,
trazendo na boca, molhado de saliva,
o pau que arremessámos.


Lisboa: Averno, Novembro de 2004

domingo, 21 de setembro de 2014

PRÉMIO NACIONAL DE POESIA DIÓGENES 2013




O Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão Celeste e com o valor pecuniário de €1500, distinguiu, de entre os livros publicados em 2013, Uma Viagem no Outono, de Rui Nunes (Lisboa, Relógio D’Água). 
     O júri quis homenagear a eficácia com que a forma híbrida trabalhada por Rui Nunes neste livro traduz, esteticamente, o mal-estar civilizacional em que vivemos. Esse mal-estar é mostrado na sua complexidade social, cultural e política, mas sempre através de modulações subjectivas que lhe conferem a autenticidade e o dramatismo com que é vivido singularmente por cada um daqueles que por ele são atingidos.
     A decisão do júri – constituído por Diogo Dória, Emanuel Jorge Botelho e Rosa Maria Martelo – foi tomada por unanimidade.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

OS CÃES

Os rapazes não serviam para nada. Nos dias em que não chovia iam para o penedo da curva do rio imitar o vento. Se fazia calor empanturravam-se de amoras e corriam para a charca onde se deixavam ficar até o sol desaparecer por detrás dos silvados mais altos. Nos dias de muito frio aninhavam-se abraçados um ao outro e iam cuspindo para o lume se calhava alguém falar no diabo. De Verão e de Inverno nus da cintura para baixo. Sempre nus. Não tinham préstimo, os rapazes, quando os foram buscar à várzea e os puxaram de dentro das ramadas bravas de um vinhedo, rente à levada, e os acartaram num carro de bois pela serra acima para os devolver aos pais. Na terra toda a gente dizia que os pais dos rapazes eram irmãos. Não importava, desde que se mantivessem arredados naquela granja da meia encosta, quase na cumeada, sem luz nem água; cheia de esterco à volta – das cabras, dos cães e dos rapazes.

Os pais dos rapazes viviam de levar as cabras para a serra e de carregar mato para uma ou outra casa grande. No povo ninguém lhes dava trabalho. Não os chamavam para jorna nenhuma nem se esqueciam do dia em que a mulher pariu os dois moços, havia mais de vinte Invernos, naquela granja batida a chuva, com a ajuda da velha, a sua mãe, enquanto os dois homens saíam para o temporal, o novo com o cajado a roçar nas urzes e a gritar com as bestas serra acima, o velho com uma corda do mato a tiracolo a descer na direcção do carvalhal. O velho foi pendurar-se num galho e ficou para ali até o povo dar com ele. O vento a uivar-lhe na boca escancarada como acontecia aos esfaimados que se enforcavam por falta de sustento. Contava-se que não tinha querido ver os moços por serem filhos de quem eram. Era o que se dizia, porque aos da granja mal se lhes ouvia a voz. A velha e o casal eram de parcas palavras e os rapazes nunca tinham aprendido a falar. Percebiam o que se lhes dizia, entendiam-se com os cães, os pássaros e os outros bichos. Mas não falavam.

[...]


Alexandre Sarrazola, Neófitos
Lisboa: Averno, 2014




[Fotograma: Andrei Tarkovsky, 'O Espelho', 1975]

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

domingo, 3 de agosto de 2014

PENÉLOPE


Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais um
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.


- INÊS LOURENÇO

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Miguel Martins


Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco semanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.


- in Telhados de Vidro n.º 19, 
Lisboa: Averno, Maio de 2014



quinta-feira, 17 de julho de 2014

AURORA(S)


"Era um cão com muita teoria"
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora. Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.

Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como "histórias verdadeiras",
casaram ou morreram - tanto faz.

O cão, sem nome, aceita o favor
da trela nesta "noite demasiado morta"
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. "P'ra mim é tinto" - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.

Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.


Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ele podia ouvir os cães à distância, e os seus latidos
levaram-no até à capela que se erguia junto à estrada,
mas não entrou nela. Isto ficava aquém de rezar,
e os cães negros eram apenas os seus pensamentos de noites de terror
através das rígidas e gratificantes florestas de Santa Cruz;
o coração dele coxeia, borbulhando sangue como bagas no seu caminho,
três ou quatro cristas de palmeira, e os berros loucos dos papagaios
são como o rumor dos testemunhos num julgamento obsceno,
mas atravessam o céu róseo e desvanecem-se, e regressa o consolo.
Na quente, oca tarde um grito atravessa o vale,
um falcão plana, e atrás da chama das perpétuas uma colina arde
com uma flauta de fumo azul; isto é tudo o que há de valor.
Ó folhas, multiplicai os dias da minha ausência para os subtrair
à humilhação do castigo, à emboscada da desgraça
pelo que são: excremento que não merece nenhum tema,
nem o nó e o aprumo de um cedro ou a erva branda,
apenas o desdém da indiferença, escapar à tempestade de abusos
como o ágil movimento dos ramos que se agitam com a graça
da resistência, curvando-se do mesmo modo que o bambu obedece
às rajadas horizontais de chuva, não enquanto martírio
mas enquanto complacência natural; abaixo dele havia uma casa
em que sem qualquer ferida era mais do que bem vindo,
e cães dóceis vinham até ao portão atraídos pela sua voz.



DEREK WALCOTT
[Trad. Inês Dias]

terça-feira, 10 de junho de 2014

CÃO CELESTE # 1 a 5




Abel Neves, Alberto Pimenta, Alexandre Sarrazola, Ana Menezes
Ana Isabel Soares, André Lemos, António Barahona, António Guerreiro, 
Bárbara Assis Pacheco, Beatriz Hierro Lopes, Bruno Borges
Cláudia DiasDaniela Gomes, David Antunes, David Teles Pereira, 
Diniz Conefrey, Diogo Vaz Pinto, Emanuel Jorge Botelho, Étienne Carjat, 
Fabiano Calixto, Fernando Augusto, Gavarni/Estúdios &etc, Filipe Abranches
Inês Dias, Isabel Baraona, Isabel Nogueira, Joana Matos Frias, 
João Barrento, John MateerJorge Roque
José Ángel Cilleruelo, José Feitor, José Miguel Silva, Konoe Nobutada, 
Luca Argel, Luís Filipe Parrado, Luís FrançaLuís Henriques
Luis Manuel Gaspar, Luís Miguel Queirós, Manuel de Freitas
Manuel Diogo, Maria da Conceição Caleiro, Maria João Worm, 
Mariana Pinto dos Santos, Miguel de Carvalho, Pádua Fernandes, 
Paulo da Costa Domingos, Renata Correia BotelhoRicardo Castro, Ricardo Marques, Rosa Maria Martelo, Rui BaiãoRui Caeiro
Rui Catalão, Rui Nunes, Rui Pires Cabral, Rui Silva
ShitaoSilvina Rodrigues Lopes, Stéphane Lermais 
e Vasco Graça Moura. 

Slow Poetry



quarta-feira, 28 de maio de 2014

SEGUNDO A LEI


Os três caçadores vinham muito fatigados
E subiam. Não traziam cão. Ao longe
Muito longe, um aceno e um grito
É de crer que este lá em baixo
Tivesse deixado ir o cão
Levado para uma mina.
Após um momento, e não entendendo
Talvez o que o homem queria, prosseguiram
O poço será diferente do exílio esta vez.


Gil de Carvalho, Amazonas e Cia,
Lisboa: Paralelo W, 2014

quarta-feira, 26 de março de 2014

THE PRICE OF EVERYTHING


Money is getting noisier.
He comes home at night
with figures jingling in his head.

Money is getting taller.
It whistles down at him
from new scaffolding in the old sites.

Money is getting long-faced.
It keeps his fingers busy
when he would rather be undoing a button.

Money is getting ambitious.
It wants him to sell his old banger
and sit a girl down  beside him in comfort.


Andrew Motion, The Price of Everything,
Londres, Faber and Faber, 1994