quarta-feira, 11 de setembro de 2013

EMANUEL JORGE BOTELHO


ANTERO DE QUENTAL, O ANJO CANSADO


     os dias iam indo sem sair da noite.
     todas as manhãs um cão entrava nos seus passos para lhe fazer companhia.
     colocou tudo dentro de uma rasura de soneto e fechou a porta.
     fechar a alma era coisa já antiga. como uma rosa que esqueceu o seu nome e já não sabe as palavras da cor.
     a vida poucas vezes lhe deu tempo de guardar no bolso o que era do silêncio, esse riso de hiena armadilhado que põe mel no rumor do medo.

     chegou ao Campo de São Francisco à hora que acordara.
     a morte já lá estava com as asas recolhidas.
     sentou-se, deu ao cão um longo afago, aconchegou-o junto às pernas, e deixou pousar nos lábios o sal de duas lágrimas.
     depois, devagarinho, tirou do bolso a mão direita e deu dois tiros na morte.

     no chão, desde aquele dia, ficou o recorte de uma sombra.
     quem a vê, dá-lhe o nome de sudário.
     e reza.


Ilha de S. Miguel, Açores


[in Cão Celeste n.º2, Lisboa, Outubro 2012]

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