terça-feira, 23 de julho de 2013

«As folhas dos dias estavam em branco.»


Em Agosto havia
tempo e vagar. Obras
paradas, cães sem coleira
e um vizinho sentado à janela
entre cortinas de mofo. Hang on
sleepy town. Tudo adiado.

Sobrávamos nós, os conspiradores,
murados no terraço pela sombra
das montanhas; sobravam
também, toda a tarde,
as luzidias ilhas de vinil
em rotação –

e enquanto o espinho
de diamante as percorria,
víamos por vezes
acender-se na penumbra
a cidade de onde nos tinham
degredado desde sempre

e para sempre, tão forte
era o apelo da estranha língua
nativa: ruas sem retorno, negras
escadarias, túneis que levavam,
madrugada dentro, aos enredos
do futuro –

por favor, por favor,
que tudo comece. Num silêncio
sem paz nem sossego
ficávamos depois abandonados.
E esses foram, já se sabe,
os melhores dias.





Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira
com ilustrações de Daniela Gomes, 
Lisboa: Averno, 2009

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