sábado, 26 de janeiro de 2013

SE HÁ CÃES DE SONO...

Se há cães de sono que os meus pulsos rasgam
cães de dentes em lava,
se há algas nos teus olhos,
se escrevo no papel a baba dos teus beijos
nenhum vagar de sombra
nenhum campo natural do vivo olhar.

Se nos teus olhos vejo um vale,
se posso dizer casa, vento, nu,
nenhuma terra pousa sobre a terra,
sobre a mão que escreve
nem a sombra cai.
Que escrevo então, nudez sem corpo,
janela sobre um mar sem mar,
mão sem mão,
porque persigo um rastro sem faro, opaco e frio?
Que face ou região, círculo aberto,
página que no silêncio não ascende,
sopro que não sobe à boca, lua morta?
Se não te quero, imagem fútil,
luva de nada,
porque insisto no pálido círculo deste campo?

Se não há sol nem mãos que o arrebatem,
se árvores não vejo, nem destroços restam,
um tudo há-de nascer, ou já nasce de nada,
de cães de raiva insones, cães insones?
Oh, dormir sem nada mais, dormir apenas,
dormir para acordar
como se houvera um acordar de vez.


António Ramos Rosa, Respirar a sombra viva,
Lisboa: Plátano Editora, 1975

sábado, 19 de janeiro de 2013

CANIS MAJOR


The great Overdog
That heavenly beast
With a star in one eye
Gives a leap in the east.

He dances upright
All the way to the west
And never once drops
On his forefeet to rest.

I'm a poor underdog,
But to-night I will bark
With the great Overdog
That romps through the dark.



ROBERT FROST

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O BARULHO DA LUZ

[...]



2

Ninguém é filho do poema universal
nem pai do seu rebanho 
de versos.
Nocturno dos sentidos
ó cão
de muitos anos
que justiça arrastas na coleira,
a cegueira de deus
a bengala da cólera dos humanos?



[...]


Armando Silva Carvalho
in Hífen n.º6, Porto, Fevereiro de 1991

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ARGOS

Alguém de Ítaca tinha partido para a outra europa
nessa manhã do princípio de janeiro as novas
agendas indicavam a lua
cheia no seu ciclo habitual de nascenças
e outras mudas

e nele se aquietou o brilho do pêlo
na alegria da corrida não mais as patas
perseguirão o movimento e as sombras
ou as narinas os cheiros distantes

nem os radares sedosos se erguerão intensos
aos sons levíssimos
desconhecidos dos humanos



Inês Lourenço
in Hífen n.º2, Porto, Abril de 1988

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

[...]

Quando te vês ao espelho é o que não vês
a farsa da piedade
e da contrição.
Estou tão cansado, cão.
Não acendas nada, apaga
a sombra do candeeiro, a paz,
a viseira do costume. A lapela do casaco
ressoterrada de lume.



Joaquim Manuel Magalhães, "Cão de cego", Sloten,
com desenhos e fotografias de Rui Sanches,
Lisboa: Europália, 1991